- Senhora CLT!
Imersa em pensamentos, não atentara para o chamado. Era estanho que, naquele
ano, em que completava 70 anos, declinassem tantas referências, especialmente ao seu legado.
- Senhora CLT!
Olhou, levantou-se e, como
fizera outras 69 vezes, acompanhou o atendente que a conduziria à sala que bem conhecia. Encontraria velhos amigos, que
cuidavam da saúde dela.
A chefe geral era muito mais
nova que todos. Nascera em 1988, em um parto difícil. Maternidade e paternidade atribuídas a muitos. Apesar de jovem, já sustentava
o mais longo período democrático do país,
o que revelava sua força e beleza. Sabia que
jovem a admirava e queria vê-la forte e com muita
saúde.
Os demais já eram velhos conhecidos. Sindicatos, federações, confederações,
centrais sindicais, ministérios, justiça, associações,
ordens, conselhos, entre outros.
Estava mais ansiosa. Por quê? Fazia regularmente os exames e ouvia diferentes
diagnósticos. Todos valorizavam o legado dela, falavam do
papel que teve no passado e os desafios que teria no futuro, preconizavam condutas,
valores e ideários. Sempre que
entrava naquela sala ampla, admirava a beleza da chefe geral, capaz de reunir
nos frágeis braços
o interesse geral de todos.
Conhecia os interesses específicos de cada um e sabia que a soma destes não resultavam no interesse geral. Sempre se perguntava:
Como consegue?
- Como vai? – perguntaram a ela.
Sabia que teria uma
recomendação para qualquer resposta, por isso, simplesmente sorriu.
Trouxera uma pilha de exames, mas sabia que todos tinham cópias. Um de cada vez, os vários especialistas anunciaram o diagnóstico de cada órgão e função.
Nada ficava sem crítica.
- Obrigada pela atenção e pelos cuidados e recomendações. Quero falar o que se passa aqui - disse indicando
o coração e o peito. Sentia-se diferente, queria falar!
- Nasci há 70 anos, também
de parto difícil. Levei um tempo para me situar. A história é longa. Mas, o que me
angustia hoje é o nosso futuro e o meu
papel nisso tudo.
Todos se mexiam nas
cadeiras, não gostavam de falar sobre o futuro. A chefe geral
redobrou a atenção. Sorria.
- Conheço a vida dos brasileiros e de outros que aqui vivem e
trabalham. País rico e dramaticamente
desigual, onde milhões de trabalhadores
vivem sem bem-estar social e sem qualidade de vida. Curioso, trabalham e vivem
mal! Ah! Há
aqueles que vivem mal porque não conseguem trabalho. Outros são tão pobres que...
Calou-se. Não entendia como isso podia ser possível. Depois, continuou.
- Fui criada para elevar o
padrão de humanidade para homens e mulheres no mundo do
trabalho. Cada pessoa é uma humanidade, disse
Mia Couto em um conto. Trouxe-me alívio
porque, a cada nova pessoa que protejo, é a
humanidade que promovo. Essa humanidade que deveria ser óbvia, produzida e promovida a cada encontro, em cada
relação.
Todos se olhavam
preocupados. Pensavam: afinal, onde vai parar aquela conversa?
- Tenho a tarefa de proteger
e promover a qualidade de vida no mundo do trabalho. Sei que, apesar das diferenças, todos reconhecem o nosso esforço. Alguns me consideram complicada, cheia de detalhes
ou querendo tudo resolver. Fizeram-me assim! Perguntam-me se posso mudar.
Respondo: devo mudar! Afinal, são
tantas as mudanças no mundo do trabalho
que somente isso já exigiria a minha
permanente adequação, aperfeiçoando minha capacidade de promover boas condições de trabalho. Mas, no fundo, não é isso que me preocupa.
Quero ajudar o desenvolvimento do meu país
para que todos tenham bem-estar e qualidade de vida. Há algo de errado nisso?
Havia certo desconforto, mas
também era possível
detectar muita curiosidade entre os presentes. Estando ciente disso, a Senhora
CLT continuou.
- Diferentemente dos diagnósticos do passado, continuamos surpresos com os últimos resultados. É inacreditável a mudança do quadro de proteção, com os milhões de empregos formais
criados, não? Mas, ainda temos milhões de trabalhadores assalariados sem proteção. E os milhões
que não são assalariados e que
vivem sem a minha proteção? E mesmo entre os assalariados,
há
muita precarização. Não seria possível e desejável
que todos tivessem os mesmos direitos? Espanta-me que me responsabilizem pela
minha ausência. O que de fato querem? Uma eterna mãe? Cresçam!
Sei, sei... Há enormes dificuldades para
construir a proteção que demandam a
partir das relações diretas, não? Por que não
apostam efetivamente em ampliar as bases da proteção por meio da negociação? Porque falta o
sujeito que promove capacidade, força.
Pois aqui há
uma mudança que deveria ser promovida: apostar e investir na negociação, em todos os níveis,
desde o local de trabalho até as grandes negociações. Sinto que nisso sou meio culpada! Tenho
dificuldades para me libertar. Penso muito sobre como apostar na democracia
como base estruturante de um sistema de relações de trabalho construído, nas relações assalariadas, a partir da efetiva organização sindical desde o chão da empresa. Olho para minhas coirmãs no mundo e vejo que países
fortes contam com sindicatos fortes, organizados desde o local de trabalho. Por
que temos tanto medo de apostar nisso?
Temos medo de ser grandes e
fortes? Os conflitos, inerentes às
relações de
trabalho, poderiam ser
tratados e enfrentados onde ocorrem. Mas, para isso, é preciso apostar na formação dos sujeitos de representação coletiva, que reequilibre as desigualdades
presentes nas relações de trabalho. Sim,
estou
falando da representação sindical no local de trabalho.
Neste momento, a curiosidade
entre os presentes aumentou e a
Senhora CLT, ao perceber o
interesse que sua fala suscitava, continuou
animada.
- Perguntam-me: e a nossa
cultura? Ao que respondo: falta confiança!
Para que arranjar “sarna para se coçar”? São frágeis os argumentos ou será
que encobrem verdadeiros
motivos? Creio que é necessário que a
negociação promova o pleno cumprimento do direito à proteção
em cada
contexto e situação concreta.
A flexibilidade não é com o objeto do
direito, mas como ele efetivamente se materializa em cada contexto. As
diferentes situações não justificam a desigualdade na observância da proteção,
mas as desigualdades econômicas das empresas
devem ser consideradas para que se promova a efetiva proteção. Ou não?
As questões são muitas. Mas, enfim, não difundiremos a prática da proteção se carecemos dos
sujeitos coletivos capazes de fazer emergir, sempre e em cada lugar, uma
cultura da melhor proteção, fruto da adaptação ao contexto, somente possível pela prática
viva da sua construção na relação de regulação
que a negociação permite.
Percebendo que os ouvintes
permaneciam interessados e ficaram receptivos aos argumentos que usava,
concluiu:
- O caminho não é longo. É permanente! Sem sujeito, não há história,
não há sociedade. É no encontro que descortinamos possibilidades. A forma
inteligente de descoberta,
nas relações de trabalho, chama-se negociação.
Seria outra, mais forte e
leve, se apostássemos verdadeiramente
nesse
fundamento. A minha
verdadeira força não está na
obrigatoriedade. Apesar de saber que ela é necessária, porque a vida é dura. Serei forte mesmo quando aquilo a que me proponho for resultado de
relações efetivamente
construídas com essa intenção.
Todos olhavam os exames, que
pouco diziam sobre o futuro. Aquela
conversa exigia a construção de outro paradigma de relação. Eles também
precisariam mudar.
* Sociólogo,
diretor técnico do Dieese,
membro do Conselho de
Desenvolvimento Econômico e
Social (CDES) e do
Conselho de Administração do Centro
de Gestão e Estudos
Estratégicos (CGEE).
Fonte: Correio Braziliense.
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