Como vivem - e morrem - os trabalhadores da indústria mais letal do país desde os tempos da colônia
Brasil de Fato | São Paulo (SP)
Trabalhadores no garimpo de Serra Pelada, em Curionópolis no estado do Pará, nos anos 1980 / Sebastião Salgado
“Durante alguns dias ouviam-se nas entranhas da rocha os gemidos de muitas dessas vítimas soterradas pelos desmoronamentos. Frustrados os serviços de socorro, quando não houve mais esperança de salvar os vivos sepultados pela catástrofe por impossibilidade absoluta de atravessar a massa rochosa que os separava de fora, a solução mais humana que se encontrou para minorar os seus sofrimentos foi inundar a mina com as águas das máquinas exteriores e fazer perecer por asfixia os que teriam de morrer por inanição angustiosíssima. E lá estão enterradas naquele gigantesco túmulo de rocha as centenas dos mineiros infelizes que encontraram a morte perfurando as entranhas da terra para lhe aproveitar os tesouros”.
Assim é narrado o desfecho do desmoronamento de uma mina de ouro de Itabira da Serra, província de Minas Gerais, em 1884. Cento e trinta e cinco anos depois, o Brasil segue sendo palco de tragédias tão cruéis quanto essa, em que trabalhadores e trabalhadoras são as primeiras vítimas.
Itabira da Serra já havia mudado de nome para Itabirito no final de 2014, quando a barragem da Herculano Mineração não resistiu ao excesso de rejeitos depositados pela companhia e, ao romper, matou três operários. Adilson Aparecido Batista foi um deles. Quatorze dias antes, ele havia avisado a empresa de que a barragem estava sob risco, mas foi ignorado.
Em 2015, quando a barragem da Vale de Fundão, em Mariana, desabou, 14 das 18 vítimas fatais eram funcionários da companhia. Em Brumadinho, o número total de trabalhadores mortos em decorrência do crime ainda é desconhecido, mas já se sabe que uma grande parte dos 142 mortos e 194 desaparecidos é de funcionários diretos e terceirizados.
O Brasil de Fato conversou com três especialistas sobre as condições de trabalho nos projetos de exploração mineral que operam no país. O quadro desenhado por eles é de descaso com as vidas humanas que sustentam os lucros bilionários das empresas do setor.
“A atividade mineral é uma das atividades que mais mata. E o Brasil é o país que mais mata. O acidente de trabalho de Brumadinho é o maior acidente de trabalho do mundo. E o pessoal até agora fica nessa firula: se é acidente, se é crime ou se é desastre. É as três coisas juntas e muito mais”, disse Marta Freitas, uma das entrevistadas.
Cotidiano
Lourival Andrade começou a trabalhar na Vale em sua cidade-natal, Itabira (MG), no ano de 1970. Hoje ele faz parte da Ação Sindical Mineral, que reúne os sindicatos mineiros do país e foi criada para pressionar por um Marco Regulatório da Mineração que oferecesse proteção aos trabalhadores e às comunidades afetadas pelo setor.
“Existe um estudo feito pela CNI [Confederação Nacional da Indústria], que a gente assistiu. [Ele mostra que] o pior clima organizacional entre as 15 principais atividades da economia brasileira é o da mineração. Esse clima ajuda a criar o segmento que tem mais acidentes, mais adoecimentos, mais mortes de todos os setores da economia”, conta. “Você tem que fazer mais rápido, mais efetivo, trabalhar em muito maior risco, tudo pra ser bem barato”.
O dia a dia inclui a exposição a uma jornada de trabalho exaustiva e muitas vezes ilegal, combinada com um ambiente que mistura carregamento de peso, vibração, ruídos, máquinas pesadas e risco de desabamentos.
Andrade relata o efeito desse ritmo de trabalho na vida ao fim do expediente, nos hábitos e vícios dos mineiros: “O que acontece quando você sai da mina? A mina tá ligada diretamente ao boteco, ao bar, ao posto de saúde: É o ansiolítico, o Dorflex, o relaxante muscular. Ou à boca: especialmente [com o] uso de cocaína”
Terceirização
Antes da reforma trabalhista e da legalização da terceirização, essa prática já era recorrente na área da mineração. Entre as vítimas de Brumadinho, o número de trabalhadores terceirizados é superior ao número de trabalhadores empregados diretos. Em Mariana, 13 dos 14 trabalhadores mortos eram contratados indiretamente.
As companhias de mineração encontram na terceirização uma maneira de maximizar lucros. Além de serviços como limpeza, segurança e alimentação, por vezes até as barragens de rejeitos são administradas por empresas contratadas – como era o caso daquela gerida pela Samarco.
Os efeitos colaterais são o achatamento do padrão de vida dos funcionários e o aumento dos riscos: “Os trabalhadores da mineração já não tem as informações corretas sobre os seus riscos, imagina o trabalhador terceirizado que está subordinado a três, quatro pessoas, que é proibido de perguntar alguma coisa. Mesmo sabendo do risco não pode se manifestar, porque é muito mais fácil sua demissão.”
Segundo dados do Instituto Brasileiro de Mineração (IBRAM), que representa as empresas do setor, a mineração no país emprega diretamente 180 mil pessoas. Cada um desses empregos gera mais 3,6 postos de trabalho, totalizando 651 mil vagas.
Acidentes, doenças, morte
Segundo a Fundação Jorge Duprat e Figueiredo de Segurança e Medicina do Trabalho (Fundacentro), de 2002 a 2010, o Índice Médio de Acidentes de Trabalho no Brasil foi 8,66%, enquanto que na mineração essa taxa chegava a 21,99%.
Auditor fiscal do Ministério do Trabalho e Coordenador daComissão Permanente Nacional do Setor Mineral, Mário Parreiras lembra que os números podem ser ainda maiores, por conta da subnotificação: “Muitas vezes, não são emitidas as CAT [Comunicação de Acidente de Trabalho]. Uma doença óssea ou das articulações, uma lombalgia, por exemplo, muitas vezes a empresa considera isso uma doença não relacionada ao trabalho e não comunica”.
“O trabalhador tem risco de explosão de gás, de queda, de atropelamento. E, se ele não morrer de acidente de trabalho, ao longo do tempo, ele vai ser acometido por doenças do trabalho: silicose, aluminose, a siderose. Isso vai comendo o pulmão, vai ceifando a qualidade de vida desse trabalhador. Surdez, perda auditiva, lesões na coluna”, relata a engenheira Marta de Freitas.
Parreira afirma que, desde 1999, quando ingressou como auditor fiscal, a mineração manteve sua taxa altíssima de mortalidade – cerca de 26 trabalhadores para cada cem mil. Ainda assim, novamente a subnotificação esconde parte do cenário real: “Trabalhadores que são empregados por empresas que prestam serviços no setor mineral morrem por condições de trabalho do setor mas não aparecem na estatística do setor mineral e sim na estatística do setor responsável pela prestação de serviços”.
A mão de obra escravizada foi amplamente usada na mineração durante o Brasil colônia. (Foto: Reprodução)
Quase nenhuma fiscalização
“A gente fiscaliza a mineração dentro das nossas limitações, porque não temos gente suficiente. O número de auditores está baixíssimo. Pior que a gente só a Agência Nacional de Mineração, que não tem quase ninguém. A gente não consegue fiscalizar as barragens todas, não tem jeito”, conta Parreiras. “O número de auditores que [temos] agora é o mesmo que a gente tinha em 1994, e a multa máxima é de R$ 6.000 por infração”
“A Organização Internacional do Trabalho considera a legislação regulamentar brasileira a melhor do mundo, só que ela não é aplicada pela grande maioria das grandes mineradoras”, diz Lourival de Freitas. “Nós somos a melhor província mineral do mundo, mas de legislação mais frouxa, de fiscalização mais frouxa, de preços baratos das pessoas.”
Futuro
“As perspectivas são muito ruins. O CEO [presidente executivo] da empresa está lá ganhando dinheiro, não tem envolvimento com as pessoas, não se sente responsável. Ele tem que atender a [demanda por] produção e remuneração do capital. Pelo que estou vendo na maioria das minas, na Agência Nacional de Mineração, como está o poder institucional, eu lastimo e acho que vai piorar. [Os acidentes e as mortes] estão aumentando”, diz Lourival Andrade.
A colega dele, Marta de Freitas, encerra apontando um futuro de ainda mais tragédias: “Lamento dizer que não aprendemos a lição com Mariana, com a Hidro, com a Herculano, e teremos outras Brumadinhos pela história”.
Edição: Pedro Ribeiro Nogueira
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