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É
evidente que a proposta de reforma da Previdência apresentada pelo governo
federal é profundamente desfavorável aos trabalhadores participantes do Regime
Geral, especialmente os mais pobres. A PEC exige um tempo de contribuição
praticamente inatingível para os trabalhadores menos qualificados que passam
boa parte da idade ativa na informalidade e em empregos de alta rotatividade.
Para aqueles que conseguirem aposentar-se nos parâmetros propostos, o valor de
um salário mínimo será o teto para grande a maioria. E, ainda assim em um
sistema de “seguro velhice” individual privado sem a obrigação da contribuição
das empresas nas quais tenha trabalhado, caso vingue a proposta de criação do
regime de capitalização puro. Ademais, a proposta extingue a garantia
constitucional do reajuste anual da aposentadoria pelo menos o suficiente para
repor a perda decorrente da inflação do período. Sem considerar as alterações
no BPC (Benefício de Prestação Continuada), na Previdência dos trabalhadores
rurais e nas pensões que de tão cruéis encontram resistência até mesmo entre as
bancadas parlamentares que apoiam o governo.
É
também patente que as razões para a urgência de tão dura proposta não se
sustentam. Este é o caso do gargalo causado pelo crescimento relativo do número
de aposentados. Se fosse considerado que quase 40% dos trabalhadores do setor
privado não contribuem com a Previdência chegar-se-ia à conclusão de que a
elevação da razão entre trabalhadores na ativa e aposentados deveria ser
compensada por uma política duradoura de transformação das características
estruturais do mercado de trabalho brasileiro como a alta rotatividade, alta
informalidade e baixa remuneração média, ampliando assim a parcela dos
trabalhadores que contribuem com o sistema. Isso, no entanto, se o objetivo da
proposta fosse reformar para melhorar o sistema de Previdência Pública, o que,
obviamente, não é o caso.
O
alardeado déficit atual da Previdência também não é justificativa consistente
para a reforma proposta. Em primeiro lugar, porque o governo insiste, por um
lado, em não considerar os tributos como a CSLL (Contribuição Social sobre
Lucro Líquido) e o Cofins (Contribuição para o Financiamento da Seguridade
Social) no cálculo das receitas da Seguridade Social e, por outro, em incluir o
déficit do Regime Próprio dos servidores federais e militares no conjunto da
Seguridade Social. Além disso, não se leva em conta a diferença entre o déficit
estrutural e o conjuntural. Este último decorrente da profunda crise econômica
seguida de estagnação que o país vive desde 2015 e das concessões realizadas
aos capitalistas na forma de desonerações da folha de pagamentos como
instrumento de manter os níveis de emprego.
Se
os fins justificam os meios, era de se esperar que a reforma proposta fosse
acompanhada de uma justificativa sólida de seu benefício para o país. Mas,
afirma-se apenas que a proposta de reforma decorre da necessidade de gerar
credibilidade do país diante dos investidores, especialmente internacionais. O
raciocínio é o de sempre: o país vive uma crise fiscal que afasta os
investidores, pois não há confiança na capacidade de solvência do Estado.
Somente com a realização de reformas que reduzam o gasto público e garantam a
geração de superávit primário permanente em patamar elevado serão geradas as
condições para a retomada dos investimentos.
Esse
política da austeridade, como a realidade já deu inúmeras provas, não gera
crescimento econômico. Representa, na verdade, a transmissão para a política
fiscal dos interesses do oligopólio financeiro que controla enormes massas de
recursos líquidos e, assim, possuem um elevado poder de coerção sobre os
Estados. Nada de novo. EC 95 e a PEC da Previdência são a dupla prioritária no
programa da oligarquia financeira - esse termo não é força de expressão - nos
últimos anos para executar mais uma volta no torniquete da dominação sobre o
Brasil.
Esse
é um buraco sem fundo. As reformas desnacionalizantes dos anos 1990 privaram o
Estado brasileiro de Soberania e força econômica capazes de impulsionar um
projeto nacional de desenvolvimento. Tornaram o país - Estado e empresas –
dependentes das decisões de investimento e aplicação dos grandes grupos
financeiros privados, sobretudo internacionais, e das matrizes das
multinacionais que operam no país. Desse modo, a cada crise econômica, com o
consequente enfraquecimento das contas públicas, os donos do dinheiro aumentam
as exigências para seguirem financiando a economia brasileira. No passado, foi
o tripé macroeconômico, ontem a EC 95 e a reforma trabalhista, hoje a reforma
da Previdência. Em seguida, a desconstitucionalização total dos gastos
públicos, depois a independência formal do Banco Central e, em algum momento, o
fim do salário mínimo legal. Como os interesses do oligopólio financeiro
chocam-se com as necessidades de superação do atraso industrial, tecnológico e
social, aprofundando-o, o país vê-se preso a uma armadilha.
Nesses
tempos de ameaça de regressão civilizacional no Brasil não se faz nem questão
de ocultar da luz do dia a pressão pela captura do Estado realizada pela
oligarquia financeira. Lembremo-nos da declaração em setembro de 2014 de Tony
Volpon, então diretor regional de um grupo financeiro internacional que teria
uma passagem pelo Bacen entre 2015 e 2016, de que a pressão do setor financeiro
sobre o governo poderia ser chamada de “presidencialismo de coação”. E
acrescentou, no final de 2018, que no Brasil há dois eleitorados, um que vota
de dois em dois anos e outro que detém a dívida pública e vota todo dia,
podendo derrubar um governo quando lhe interessar[1].
A
defesa da reforma da Previdência não é, contudo, feita exclusivamente pela
parcela financista dos capitalistas. Pelo contrário, empresários do setor
industrial e de Serviços e as entidades que os representam politicamente
militam firmemente pela aprovação da PEC. Os dias 25 e 26 de março, por
exemplo, foram dias movimentados para a classe dominante. Ocorreram em Brasília
duas reuniões dos grupos de proprietários de grandes empresas que se intitulam
“Movimento Brasil 200”[2] e
“Coalizão Indústria”[3] com
o presidente da República e a mensagem principal transmitida foi o apoio
empresarial à reforma da Previdência. Em São Paulo, a FIESP preparou um evento
com o vice-presidente da República que contou com a presença de mais de 600
capitalistas. O foco era transmitir a preocupação generalizada dos presentes
com a falta de prioridade do Palácio do Planalto com a agenda empresarial, em
especial com a reforma da Previdência.
Os
capitalistas reafirmam a crença de que a reforma da Previdência é vital para o
retorno do investimento. Alertam - não sem um tom de ameaça - que sem a reforma
“não haverá emprego”, “o país quebra”, “ninguém vai investir”. É grande a
convergência destes com a visão do setor financeiro. As declarações recentes
dos capitalistas do setor não financeiro endossam a análise de que o principal
problema do país é o elevado gasto público, sendo a Previdência Pública a causa
maior. Repetem que a realização da reforma traria credibilidade ao país e
levaria a uma redução da taxa de juros. Não vão além disso. Também o Instituto
de Estudos para o Desenvolvimento Industrial (Iedi), ligado aos grandes grupos
industriais nacionais, em um documento de setembro de 2018 intitulado
“Indústria e o Brasil do futuro” advoga que o entrave principal ao crescimento
econômico do país é o desequilíbrio fiscal e a reforma da Previdência ao lado
da reforma tributária são os temas prioritários a serem enfrentados.
Percebe-se
que a crítica do setor não financeiro ao domínio das Finanças é quase nula.
Como se verá a seguir, existem um conjunto de engrenagens que constrangem o
Estado a servir à oligarquia financeira em franco prejuízo das atividades
produtivas e que não inquietam os capitalistas industriais e do setor de
Serviços.
Em
primeiro lugar, dado que a redução da taxa de juros[4] ganhou
a centralidade da preocupação empresarial devia-se colocar no primeiro plano a
injustificável política do Banco Central em manter a taxa SELIC estável nas
últimas sete reuniões diante de uma taxa de inflação quase sempre abaixo da
meta e nenhuma pressão de demanda. E, diante da recente declaração do banco
central norte-americano de que interromperá a elevação da taxa de juros,
reduzindo o diferencial esperado entre a taxa de juros interna e externa,
deviam exigir do Banco Central do Brasil uma sequência de reduções da taxa
SELIC. Naturalmente se levantariam as vozes do lado oposto bradando que é
impossível reduzir a SELIC significativamente dada a elevada relação entre a
dívida pública e o PIB.
Estes
fecham os olhos, porém, para o fato de que, além do efeito da própria crise
sobre as receitas do governo, os juros elevados são também causa da pressão
sobre as contas públicas. Mesmo após a redução da SELIC entre 2016 e 2018 de
14,25% para 6,5% a.a., o pagamento de juros da dívida consumiu em recursos
públicos – captados, é bom lembrar, em um sistema de tributação penoso para os
trabalhadores e dócil para a alta burguesia – mais de 350 bilhões de reais em
2018, o equivalente a 5,2% do PIB. O déficit total da Previdência no respectivo
ano, mesmo no cálculo equivocado e pró-rentistas feito pelo governo, foi de 290
bilhões de reais. Ou seja, no pior ano do balanço contábil da Previdência, o
déficit desta ainda foi inferior ao gasto com pagamentos de juros da dívida
pública no ano em que a taxa de juros foi a menor da série histórica. E, vale
notar, que enquanto os recursos da Previdência vão direto para o consumo das
famílias, estimulam toda a economia e parte retorna ao Estado na forma de
impostos, o gasto com juros da dívida direciona-se a uma minoria e possui baixo
efeito sobre a demanda agregada.
Em
segundo lugar, os capitalistas também não se mobilizam com o mesmo entusiasmo
para denunciar que, como aponta o próprio Iedi, as taxas de juros ao tomador de
empréstimos caíram menos de um terço no mesmo período em que a taxa SELIC foi
reduzida em mais de 50%. Tampouco reivindicam a eliminação de mecanismos que
diminuem a eficácia da política monetária, isto é, impõem elevações da taxa de
juros para controlar a inflação acima do que seria necessário na ausência de
tais mecanismos. É o caso, por exemplo, das Letras Financeiras do Tesouro
(LFT’s), títulos públicos pós-fixados indexados à taxa básica de juros, ou
seja, são reajustados segundo as variações da taxa SELIC. Logo, quando o Bacen
realiza uma trajetória de elevação da taxa de juros, as LFT’s se valorizam,
consequentemente seus detentores terão um aumento de seus rendimentos e maior
poder de consumo.
Com
isso há dois problemas. O primeiro é que quando o Bacen eleva a taxa SELIC, o
objetivo é reduzir a capacidade de gasto dos indivíduos para controlar a
inflação, porém quem detém LFT’s terá maior poder de compra. Como as LFT’s
representam boa parte da parte da dívida pública federal (37% em janeiro de
2019), tem-se um efeito contrário ao pretendido pelo Bacen quando este eleva a
taxa de juros, obrigando-o a realizar novas elevações para reduzir a demanda
agregada e, consequentemente, a inflação. O segundo é que a correlação direta
entre elevação da taxa SELIC e valorização das LFT’s amplia a necessidade de
destinação de recursos para o pagamento dos juros da dívida, ou seja, são
prejudiciais às contas públicas. Vale acrescentar, que é improvável que as
LFT’s deixem de existir naturalmente, como pretendem os economistas liberais,
pois elas são uma exigência da oligarquia financeira para financiar o Estado
brasileiro em tempos de turbulência.
Em
terceiro lugar, nem mesmo o ataque direto sofrido pela Indústria com o fim da
Taxa de Juros de Longo Prazo praticada pelo BNDES que garantia condições um
pouco mais favoráveis para o financiamento dos investimentos privados - no país
que pratica, ainda hoje, taxas de juros reais entre as mais altas do mundo -
recebeu a devida oposição por parte dos capitalistas. Tem sido tamanha a
incapacidade dos capitalistas industriais de fazer frente ao setor financeiro
que, mesmo tendo apoiado maciçamente a candidatura do atual Presidente da
República, o novo governo deu de ombros às súplicas de diversas entidades
representantes dos empresários que solicitavam que pelo menos não se
extinguisse o Ministério de Industria, Comércio Exterior e Serviços (MDIC).
Por
fim, a atual política do Comitê de Política Monetária de reduzir paulatinamente
a meta anual de inflação chegando a 3,75% em 2021 com banda de tolerância de
1,5% representa mais um aperto na camisa de força que sufoca o crescimento
econômico do país e aumenta o poder de pressão da oligarquia financeira sobre o
Bacen. Quanto a isso, o que dizem os capitalistas do setor não financeiro?
Nada.
Esse
comportamento político da burguesia não financeira não se explica, porém,
somente por uma capitulação ideológica ao capital financeiro ou por uma
cegueira quanto aos próprios interesses. Naturalmente, a entrada no mercado de
trabalho todos os anos de economistas em sua grande maioria com formação liberal
e a dominação quase completa do debate econômico na grande imprensa nacional
pelos funcionários da oligarquia financeira tem papel não desprezível na
conformação do pensamento médio do conjunto dos capitalistas. Contudo, há
características da forma de funcionamento do capitalismo atual que geram esse
comportamento.
As
grandes empresas de capital aberto possuem no topo de suas prioridades a
elevação da remuneração de curto prazo dos acionistas. Entre 2009 e 2011, o
valor recebido pelos acionistas do conjunto das empresas do Novo Mercado
cresceu em média 25%. A consequência dessa característica é a drenagem de
recursos que poderiam ser direcionados para o investimento produtivo e uma
pressão constante por redução de custos, em especial, os ligados à mão-de-obra,
como o recolhimento do INSS patronal. As empresas tornam-se também reféns dos
movimentos voláteis do mercado financeiro.
Outra
característica é a participação dos ganhos com aplicações financeiras (as
operações de tesouraria) no total das receitas das empresas não financeiras.
Esse elemento foi muito notado quando, ao final de 2008 na fase aguda da crise
capitalista global, empresas industriais brasileiras tiveram grandes perdas,
pois especulavam no mercado de câmbio apostando na valorização do real, porém a
moeda brasileira sofreu uma abrupta desvalorização. Mas, também entre 2010 e
2013, boa parte da queda do lucro líquido das empresas não financeiras adveio
das perdas com aplicações financeiras em decorrência da redução inédita da taxa
básica de juros até março de 2013.
As
transformações no modo de funcionamento do capitalismo brasileiro desde os anos
1990 e os impactos da crise capitalista global sobre a fragilizada estrutura
produtiva do país tornaram as grandes empresas industriais e de Serviços
altamente subordinadas e integradas ao setor financeiro. Isso, juntamente com a
hegemonia ideológica neoliberal, explica o coro uníssono dos capitalistas em
defesa da atual proposta de reforma da Previdência, muito mais que as razões
por eles alegadas. Os capitalistas do setor não financeiro, sobretudo da
Indústria, nunca estiveram tão submetidos à oligarquia financeira, aceitando
passivamente a posição de sócio menor, ainda que guardem contradições
secundárias.
Mais
do que em qualquer outro momento, a reconstrução de um projeto nacional de
desenvolvimento para o Brasil dependerá da convicção de sua necessidade por
parte do povo trabalhador, tornando-se assim seu protagonista. Portanto, uma
proposta de estratégia desenvolvimento, para ser factível, deverá ser
simultaneamente nacional e popular, ou seja, deverá integrar diretamente o
desenvolvimento soberano e as demandas prioritárias do povo[5]. O
amadurecimento dessa compreensão e o delineamento desse projeto pode contribuir
para o campo democrático realizar a Resistência Ativa à regressão
liberal-conservadora em curso.
Publicado originalmente na Carta Maior (www.cartamaior.com.br)
*Diogo Santos é economista. Mestrando em Economia pela Universidade
Federal de Minas Gerais. Concentra sua pesquisa na área de Economia Brasileira
Contemporânea.
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