Nota de esclarecimento à sociedade e à imprensa, divulgada pela Coordenação da Comunidade Dandara
Belo Horizonte, 16 de março de 2011
O Jornal O TEMPO publicou no último domingo, dia 13 de março de 2011, reportagem especial de duas páginas, com chamada de capa, sobre “venda de lotes e outras denúncias” contra as 887 famílias da Comunidade Dandara – uma das maiores ocupações organizadas do Brasil, sob ameaça de despejo -, localizada entre os bairros Céu Azul e Nova Pampulha, em Belo Horizonte, MG. A matéria, carregada de preconceito e com nítido propósito de criminalizar a comunidade, violou os princípios básicos do jornalismo profissional, razão pela qual será requerido judicialmente direito de resposta. Antes disso, contudo, nos sentimos na obrigação de contestar publicamente a reportagem, enfrentando os principais ataques feitos pelo Jornal O TEMPO que, com essa reportagem, assinada pela jornalista Magali Simone, cometeu um desserviço à opinião pública e ofendeu a própria categoria jornalística.
• Sobre a venda de lotes na Comunidade Dandara
O Regimento Interno da Comunidade Dandara proíbe a comercialização de lotes dentro da ocupação. Essa prática ofende frontalmente os princípios que sustentam a legítima luta dos sem teto. Entretanto, existem algumas pessoas que se aproveitam desse processo para obter ganhos financeiros com a venda ou troca de lotes. Ora, isso ocorre em ocupações organizadas, ocupações espontâneas e também nos próprios programas habitacionais da Prefeitura, que prevêem período de carência para alienação dos imóveis. Trata-se de pobre vendendo para pobre no circuito da chamada “especulação de baixa intensidade”, prática comum nas periferias urbanas de um país profundamente desigual como o Brasil. Na Dandara não poderia ser diferente, pois não somos uma comunidade de “puros”, temos contradições e problemas que precisam ser – e estão sendo – superados. Jamais omitimos isso aos nossos apoiadores, pois nossa política é balizada pelo critério da verdade. Há pessoas que agem de má fé em todas as classes e segmentos da sociedade, inclusive dentro do Jornal O Tempo. A omissão e insensibilidade do poder público, a falta de oportunidade para viver no entorno, arrumar emprego em outra região e outros fatores também afetam famílias que acabam mudando o rumo da vida.
De qualquer forma, é importante deixar claro que as Brigadas Populares, a Coordenação interna da Comunidade e a Rede de Apoio sempre condenaram a comercialização de lotes e lançam mão de medidas concretas para a conscientização dos moradores e coibição de transferências irregulares. Felizmente, temos obtido êxito. Com quase dois anos de existência, tais situações são uma exceção na Dandara. Para extirpar totalmente essa prática, já havíamos, inclusive, começado a recadastrar todos os moradores e fornecer para as famílias que se enquadram no Regimento Interno um Termo de Posse - intransferível, inegociável e válido por um ano.
Muito maliciosamente, o Jornal O Tempo fez da exceção a regra com o nítido propósito de manchar a imagem da Comunidade perante a opinião pública. Ademais, o Jornal O Tempo omitiu os bons frutos de Dandara, como os equipamentos coletivos construídos em mutirão, o trabalho de alfabetização (Projeto MOVA), as hortas e jardins, o Plano Diretor coletivo, o respeito à legislação urbanística e ao meio ambiente, as atividades culturais, as equipes de saúde e educação, o trabalho das pastorais sociais, os vínculos de solidariedade, a conciliação de conflitos, as vivências de estudantes, a ampla rede de solidariedade, reuniões e assembleias gerais e etc. Estão em construção, em regime de mutirão a Igreja Ecumênica de Dandara e uma Hora Comunitária. Há também dezenas de vídeos amadores disponibilizados no youtube, que também ajudam a entender o que se passa em Dandara. Os dois moradores envolvidos em venda de lotes, citados pela reportagem, estão proibidos de morar na comunidade até que a Assembleia Geral decida definitivamente o caso.
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Sobre os danos ambientais
A preservação ambiental e dos cursos d'água sempre foi uma diretriz para a ocupação do terreno que abriga a Comunidade Dandara. Desde o início é feito um acompanhamento técnico da Comunidade, através de arquitetos, engenheiros e estudantes dessas áreas, com a participação de dandarenses, para assim evitar erros na caminhada de conquista da moradia. Podemos afirmar que a comunidade não comete crime ambiental como afirma o Secretário da Regional Pampulha.
Ao contrário de empreendimentos realizados pelo poder público que cobrem os cursos d`água com ruas e avenidas, como é o caso do Boulevard sobre o Rio Arrudas, na ocupação Dandara os cursos d`água foram preservados, criando a possibilidade de harmonizar o convívio das pessoas com as águas. O único que degrada a nascente que existe no terreno é poder público por meio da Escola Estadual Deputado Manoel Costa, localizada dentro do terreno. A escola comete de fato um crime ambiental, construída desrespeitando a APP - Área de Preservação Permanente - da única nascente que existe no terreno, sobre um dos poucos cursos d`água perene dentro do município de Belo Horizonte. Para agravar a situação, a instituição de ensino lança seu esgoto no córrego, este por sua vez deságua na margem esquerda da Lagoa da Pampulha, importante fato, pois nesta margem não existe interceptor de esgoto.
A Comunidade tem sido objeto de estudo de várias escolas de arquitetura e engenharia onde são construídas e discutidas com a comunidade inúmeras propostas socioambientais para absorção dos impactos negativos decorrentes da ausência de rede coletora de esgoto, sistemas de disciplinamento das águas de chuva, coleta de lixo, dentre outras questões que preocupam a comunidade à medida que se consolida na área. Uma das propostas que esta sendo construída é a Horta Comunitária no entorno da única nascente dentro do terreno. Este equipamento coletivo irá criar um cordão de isolamento da nascente, garantindo assim que as águas cinzas, que não são recolhidas pelo sistema de coleta de esgoto, não afetem a única nascente que existe dentro da gleba. A realização desta horta tem sido acompanhada pela CAUP - Centro de Agricultura Urbana e Periurbana da Região Metropolitana de Belo Horizonte.
Existem áreas coletivas dentro da Comunidade que tem sido objeto de propostas e realizações de plantio de árvores, além de ampla preservação dos espécimes vegetais que ali existem. Um dos exemplos ocorre em uma linha de drenagem paralela à Rua Geraldo Orozimbo, coincidente agora com o leito de duas ruas da comunidade, as ruas Zilda Arns e Paulo Freire. A preservação dessa linha de drenagem tem sido um importante mote para a educação ambiental das 887 famílias que agora tem onde morar, o local teve suas pequenas árvores revitalizadas com a ação.
É de fato preocupante como iremos recuperar os danos ambientais que o poder público tem realizado em toda a cidade. A proximidade da Copa de 2014, as obras do PAC e também o Programa Minha Casa Minha Vida, que não atende a demanda por habitações para população com renda mensal até 3 salários mínimos, têm gerado obras que ignoram as questões ambientais. O Sr. Osmando Pereira, Secretário da Regional Pampulha, nunca se deu ao trabalho de visitar nossa comunidade para verificar o absurdo de sua acusação. O Jornal O Tempo tampouco nos permitiu contestar tal denúncia. Caso esse Senhor realmente estivesse preocupado com o meio ambiente, pediria exoneração imediata da Prefeitura de Belo Horizonte que irá cometer o maior crime ambiental da história de nossa cidade ao aprovar uma operação urbana consorciada que irá criar uma nova regional sobre a última grande área verde de BH, na Região do Isidoro.
• Sobre o fornecimento de água e energia
Após muita mobilização e pressão, a Comunidade Dandara conquistou junto à empresa COPASA a instalação de um – apenas um – padrão de água. A conta deste padrão custa à comunidade, em média, dez mil reais mensalmente (não foi concedida tarifa social aos moradores). Para o pagamento desse montante, cobra-se a taxa de R$ 15,00 por família. Quanto à energia elétrica, a empresa CEMIG se nega a regularizar o fornecimento, como se a natureza da posse pudesse tirar o direito à prestação do serviço público, violando a dignidade da pessoa humana. Assim, toda a rede de iluminação pública e distribuição de energia foi construída pelos próprios moradores. O Jornal O Tempo afirma que cobramos taxa mensal de R$ 40,00 pela energia, o que não é verdade. O que ocorre é a divisão dos custos da instalação (gastos com fios, disjuntores, mourões ...) entre os próprios moradores. Nenhum morador é autorizado a cobrar taxa de energia por ceder a fiação para outra família.
• Sobre a ameaça de vizinhos
O Jornal O Tempo publicou ainda que vizinhos dizem ser ameaçados por moradores da ocupação. O tablóide também não se deu ao trabalho de comprovar a veracidade dessa denúncia. Não consta contra as famílias de Dandara nenhum procedimento criminal por ameaça cometida contra vizinhos. Trata-se de calúnia feita contra os moradores da Comunidade sem que lhes fossem ofertada pelo Jornal o direito ao contraditório, o que seria o mínimo esperado de um jornal digno de respeito. Ao contrário, a Comunidade Dandara tem recebido a solidariedade de muitas famílias do entorno dela. Se por um lado há vizinhos que se incomodam com Dandara, por outro há muitos vizinhos que reconhecem o direito dos pobres de lutar por um direito constitucional, que é o direito à moradia.
• Sobre as alegações da Construtora Modelo
A Construtora Modelo, que, junto com sua coirmã, a Construtora Lótus, responde por mais de 2.500 processos judiciais de mutuários lesados, busca omitir a retenção especulativa da área jogando a responsabilidade pelo descumprimento da função social da propriedade na burocracia administrativa. A celeridade dos licenciamentos ambientais envolvendo o megaprojeto imobiliário da Mata dos Werneck e o empreendimento que a Construtora Rossi pretende construir na Mata do Planalto, ambos em áreas extremamente sensíveis do ponto de vista ambiental, colocam em cheque a tese de que a empresa não fez nada no terreno – por mais de 10 anos! – por que aguardava a liberação do alvará da municipalidade. Ora, por que os advogados da empresa, tão diligentes para providenciar o despejo de aproximadamente 5 mil pessoas, não recorreram ao Judiciário para viabilizar o início das construções? Além disso, a área já estava abandonada desde a década de 1970, quando a fazenda, que ali existia, entrou em processo de falência.
A empresa ainda mente ao afirmar que doou uma fração do imóvel ao Estado de Minas Gerais para construção de uma escola. Ora, como isso poderia ser possível se a Escola Estadual Deputado Manoel Costa já existia no terreno muito antes da Construtora Modelo adquirir o imóvel? Também omite a verdade ao afirmar que não cabem mais recursos contra a ordem de reintegração de posse. O Jornal O Tempo não se deu ao trabalho de averiguar que a decisão do Tribunal de Justiça de Minas Gerais determinando o desalojamento forçado ainda não transitou em julgado - havendo, inclusive, pendência de recurso no Superior Tribunal de Justiça.
No mais, a afirmação da Construtora Modelo de que irá construir na área empreendimento destinado a famílias de baixa renda (de até 3 salários mínimos) é piada de mau gosto e desmerece maiores comentários. Basta dizer que, apesar de todos os subsídios e isenções fiscais, nem mesmo o Programa Minha Casa Vida conseguiu atrair as construtoras para a população de baixa renda que representa 90% do déficit habitacional de Belo Horizonte: acima de 60 mil moradias. Até hoje, na capital mineira não foi concluída nenhuma unidade habitacional destinada a famílias com renda de até 3 salários mínimos mensais.
• Conclusão
Infelizmente, à exceção da Revista FÓRUM (edição 94, janeiro/2011), nenhum grande veículo de comunicação se dispôs até o presente momento a tratar a Comunidade Dandara com profundidade, abordando-a como um conflito social que requer a ação responsável das autoridades públicas. A grande mídia também não trouxe à tona o pano de fundo do processo que envolve Dandara para suscitar o debate sobre a questão habitacional, a segregação socioespacial e as necessárias Reformas Urbana e Agrária. Não estamos indignados com o fato do Jornal O Tempo ter divulgado flagrante de venda de lotes em nossa comunidade. O que nos repudia é a postura irresponsável de um veículo de comunicação que, além de desrespeitar as regras mais comezinhas do jornalismo profissional, não mede as conseqüências de uma conduta que pode contribuir indiretamente para uma “solução” violenta para um conflito social que não deve ser tratado como caso de Polícia. Em verdade, o Jornal O Tempo assumiu a defesa dos que pugnam pelo despejo das 887 famílias de Dandara, dos que lucram com a retenção especulativa de vazios urbanos, dos que atentam diariamente contra o direito à cidade das maiorias excluídas. Para tanto, era preciso omitir as conquistas e os avanços da Comunidade Dandara, referência para o Brasil e o mundo de luta e resistência popular organizada.
Atenção: Tratar as Comunidades Dandara, Camilo Torres e Irmã Dorothy como caso de polícia, tentar realizar despejo por força policial, jamais será solução justa para o conflito social que está instalado aos pés da Serra do Curral. Despejo, caso seja feito, será o início de conflitos muito mais sérios, a inauguração de um problema muito mais grave, porque atentará contra a dignidade humana de milhares de pessoas. Por isso, reivindicamos ao Prefeito de Belo Horizonte, Márcio Lacerda, ao Governador de Minas, Antônio Anastásia, ao Tribunal de Justiça, ao Governo Federal, enfim, às autoridades a abertura de diálogo para que uma saída justa seja encontrada para que as 1.200 famílias dessas três Comunidades, que já construíram cerca de 1.100 casas de alvenaria, possam dormir em paz e seguir lutando por uma sociedade que caiba todas e todos.
Coordenação da Comunidade Dandara – Brigadas Populares – Rede de Apoio e Solidariedade
Belo Horizonte, 16 de março de 2011